Friday, August 17, 2007

A Queda

O barulho estridente do metrô se confundia com a galhofaria das crianças na espera para a baldeação. Dezenas de crianças de todas as idades, filhas de ciganos, com as roupas sujas, rasgadas, corriam por entre os robustos pilares de concreto. Sorrisos. Como duendes que espalham o pó da alegria, elas ocupavam toda uma parte da plataforma que fica entre a chegada de um metrô e a saída de outro. Mas só elas podiam sentir o aroma e a excelsa enlevação de tal pó. A todos ali ficava a desconfiança daquelas mães, que deixavam aquelas crianças soltas a brincar, permitindo que elas fossem; crianças. E elas corriam, driblavam os olhares curiosos e os secos de inveja e espalhavam seu pó límpido, com a inocência irradiando de cada gesto e cada risada.
A moça esperando o metrô, como todos, nota as barulhentas crianças, mas como está atrasada só se atem ao seu relógio e ao vão de onde virá o metrô - mesmo sabendo que seu olhar penetrante não ira fazê-lo chegar mais rápido. Ela dividia os olhares das pessoas: algumas observavam as crianças, outras a admiravam, já estava acostumada com isso, ser olhada, fitada com deleite. Seu vestido apertado permitia que se enxergasse o volume de seu belo corpo - os seios e as nádegas, produtos da cirurgia plástica, davam a idéia, mesmo embaixo das roupas, de como seriam se desnudos. As coxas grossas estavam um tanto descobertas e caminhavam quase que coladas, se roçando a cada passo que ela dava.
Em um minuto o metrô chega, para ela pareceu muito mais, para as crianças, muito menos. Mesmo assim elas continuaram a brincadeira nos vagões. Dessa vez, as mães as repreenderam e as crianças mais velhas pegaram as mais novas para cuidar, uma menina de uns dez anos passa em frente à moça com um garotinho de poucos meses no colo. O bebê enrolado em panos velhos, com um olhar arregalado, curioso e enternecedor, encanta a moça, mas nada que a tire de sua aflição.
Logo chega a primeira estação, a moça desce, as crianças ficam. Ela largou o trem a passos largos, subiu as escadas rolantes às pressas, e já fora da estação passou por entre os corpos moribundos e mutilados sem notá-los, apesar de precisar se esquivar deles vez ou outra. Dava a impressão de ser uma mulher comum, mas com o diferencial da voluptuosidade, podia ser vista até como uma “mulher de negócios”, o que, em outros termos, de fato ela era. Quando foi atravessar a rua, ela ouviu um ruído de sirene que se aproximava dali. O que fez com que ela notasse o calçado do outro lado da rua e percebesse que ali se formava uma aglomeração.
Ao atravessar a rua viu uma mulher estatelada no chão, percebeu sangue e alguns ossos por ali. A mulher havia caído do décimo primeiro andar de um prédio com os braços para baixo, como se tentasse impedir a queda. As primeiras partes de seu crânio, que haviam se deparado com o solo, foram seus dentes incisivos centrais superiores permanentes, já não mais permanentes - aqueles de cima e da frente -, que ao se chocarem com o solo provocaram na mulher uma dor de uma pungência indescritível, depois dos dentes foi a vez dos outros dentes, do queixo – aí, com certeza, já estava morta – e, por fim, o resto do corpo.
O corpo ali estirado comoveria intensamente qualquer ser humano que pudesse vê-lo, mas não havia qualquer ser o bastante humano passando, apenas seres de espíritos tingidos de concreto, espíritos cinéreos, petrificados, vagando com rumo definido, com emoções diárias definidas, pouco tempo tinham para se comover. Não que não houvesse um choque, um susto, ou algum tipo de comoção, mas que esses sentimentos eram efêmeros, frágeis; não condiziam com a experiência de ver o que se via.
Começou então a boataria, duas hipóteses prevaleciam: a mulher, de fato uma empregada doméstica, ao limpar a parte inferior externa dos vidros da janela do alpendre do edifício em que trabalhava, escorregou e, como estava de cabeça para baixo, caiu daquele jeito; outra hipótese menos verossímil era de que ao limpar o vidro, a mulher, muito triste, tenha praticado o pecado mortal do suicídio.
Uma senhora muito assustada tentando não demonstrar seu júbilo, rejubilava-se com o que chamava de “milagre”: “a mulher iria cair em minha cabeça, mas por poucos segundos não caiu!... Nasci de novo!”, alguns outros assustados responderam: “eu vi!”. Mas seria um milagre fazer com que aquela doméstica fincada no chão, escorregasse, uns poucos segundos depois para não cair na cabeça da senhora, mas que mesmo assim caísse de uma altura de mais de trinta metros? Ou pior, que estivesse tão triste a ponto de ao ver a fria calçada da Avenida Paulista lá do alto, escolhesse esta à vida, alguns segundos depois, também por milagre, deixando três filhos e um marido omisso?
A moça saída do metrô, ao ver toda a cena, só coloca a mão no peito e exclama para si: “meu Deus!”. Depara-se, mas logo volta à caminhada de passos largos, afinal, está atrasada. Mais alguns metros e já chega a seu destino, um motel recôndito que havia por ali, para encontros escusos.
Entrou no motel sem ser parada pelo recepcionista, ela sabia qual seria o quarto dessa vez, não precisava ser conduzida e ele a conhecia, sabia que a esperavam ansiosamente. Chegou ao quarto e antes de bater se aprumou, endireitou a pesada bolsa que carregava, controlou a respiração ofegante e bateu à porta. Um homem abriu, e apesar do atraso, ele a atende com um sorriso, não havia momento para discussões, explicações ou brigas. Ela nem podia falar do que acabara de ver na calçada da Avenida Paulista não era esse tipo de intimidade que tinha com ele e falar aquilo estragaria o que teriam.
Ela já o conhecia há tempos, ele e sua esposa, que também estava ali. Antes eles sempre variavam na escolha da terceira pessoa, mas ela conseguiu seduzi-los, desviá-los dessa constante mudança e mantê-los apenas com ela. Já fazia mais de um ano que se encontravam todo mês no mesmo motel, não foi fácil para a moça variar tanto a ponto de sempre ser requerida. Algo nela fazia com que gostasse dos dois, mesmo sabendo muito pouco sobre eles, e isso nada tinha a ver com o que pagavam para ela, pois outros pagavam muito mais. Certa vez, em meio aos gemidos e toda a lascívia, o celular da esposa tocou, era a filha de três anos querendo saber aonde é que estava o pacote das bolachas preferidas. Ficou sabendo da existência da menina assim, no mais só sabia das posições e brincadeiras sexuais preferidas, tudo era envolvido pela carnalidade, sem espaço para mais nada.
O homem a beija com um leve toque nos lábios, pega sua pesada bolsa e coloca em um canto do quarto, a mulher também vem e a beija com a mesma sutileza. Eles a conduzem até onde tudo começará e sem lhe darem tempo de pensar ou de qualquer outra coisa começam a despi-la e a se despir - diferente da maioria dos clientes dela, eles ficam bonitos em pele nua, o que melhora um pouco tudo. Eles começam a beijar o corpo dela, a envolvem, ele por traz e a esposa pela frente, ela nada sente, mas geme mesmo assim. Um gemido falso que a própria moça já não sabe mais distinguir do verdadeiro, ou nem sabe dizer se ainda existe um verdadeiro. A esposa chupa seu sexo pela frente e o marido se esbalda na parte de trás, eles “exigem” que ela tenha prazer, que se lubrifique. Repentinamente, por frações de milésimos, as imagens da Avenida Paulista vêm à sua cabeça, mas se esforça para esquecer e até, quem sabe, aproveitar o momento. Ela acaba se entregando e se vê na trama em que se enredou, ele abre a bolsa dela e retira o gel lubrificante e o “cinto-pênis” e enquanto ela o penetra, ele mesmo chupa sua esposa. E tudo acontece e permanece assim na volúpia de uma tarde de “um dia útil” na cidade de São Paulo, com as mudanças das posições, da atividade e da passividade, com o deleite do casal e a preocupação e o esmero da moça, que sabe, está trabalhando. A esposa goza, ele também, mais de uma vez até, depois de passarem por todas as partes do quarto se tocando, se esfregando, eles enfim se deitam na cama, é hora da moça ir-se, ela não pode sair com eles. Ela vai ao banho sozinha, retira o suor dos três que lhe cobria o corpo e se perfuma. Ao sair vê os dois deitados e refestelados na cama, recebe por seus serviços, os beija e sai.

Monday, August 13, 2007

O esporte pelo prazer do esporte!


Nos movimentos do corpo, pense, sinta... Não se prenda a pensamentos competitivos ou de calorias perdidas. Prestigie o movimento, tente aprimorá-lo. Sinta os músculos trabalhando, exorte o músculo maior, aquele que pulsa no peito, à mais esforço, faça-o pulsar mais. Tente alcançar o limite de seu físico, voltando o pensamento para cada movimento. Sentindo a água, ou o vento afagando-lhe o corpo, o modo como este invólucro enervado sente, tateia a tudo. Perceba as transformações químicas dentro de si e os prazeres que delas advém; paulatinamente o pensamento se confundirá com o movimento, eis a meditação, com a suspensão da mente e do corpo, perceber-se-á o enleamento dos dois e ocorrerá a enlevação dessa unidade. O prazer do esporte será alcançado! E assim: “O esporte, pelo prazer do esporte!” Vivendo o prazer sem olvidar que existe um mundo que precisa ser reconstruído... Sendo escusado dizer que essas palavras têm ainda mais prazer naquele esporte, pai de todos os esportes, que tanto amamos...

Thursday, July 12, 2007

O Homem-Lama


O Homem-Lama caminha cunctatório, trôpego, engessado pelo barro que reveste seu corpo. Arrasta-se levando o seu mundo nas costas, tanta é a sujeira que lhe pesa o físico. Emporcalhou-se nos dias anteriores, deixou-se levar e foi se deixando enlamear. A coisa veio pegando e tomou posse de seu corpo. Agora ele vai esmoído, soltando-se paulatinamente do laço da lassidão e vai. Chega, carrega forças, e tem a capacidade de impulsionar-se e mergulhar. A água já amolece um pouco a crosta, que o envolve, e lhe dá possibilidade de um movimento. Então ele nada. O nadar vai lhe removendo o excremento, que ao descolar-se do corpo vai esvaindo, sumindo, se extinguindo. Isso dá mais forças ao Homem-Lama, que nada, nada até ficar limpo por completo, e assim está pronto para se sujar novamente.

Sunday, January 14, 2007

Das Utopias

Se no mundo hodierno toda utopia é invariavelmente difamada como ilusão, não é só porque se apresenta como ilusão aos olhos mais acomodados, mas também porque os espíritos já estão por demais diluídos na mentira, para assim, em um repente se voltar contra ela. Nem mais todo o sofrimento que possa ser infligido aos menos poderosos pode rebelá-los. O sofrimento, a putrefação, a pobreza já se encravaram nas carnes e das carnes já não escorre sangue algum, tudo se tornou próprio, “se tornou natural”. Até os traficantes dos morros e das favelas, de certo modo, permanecem pobres mesmo já enriquecidos pela venda de drogas: vivem nos mesmos lugares, já que não podem sair de seu lugar de trabalho. O desejo de poder tem sido um fim em si mesmo, poder para ser exercido. E os olhares ensandecidos por trás das máscaras dos terroristas nada mais são que a reprodução de toda loucura em que vivemos: a rebelião vem como espelho sem dialética. Os ideais que regeram por longo tempo o mundo ocidental: liberdade, igualdade e fraternidade são não só vistos por alguns como já concretizados, mas também como sonho inalcançável. A busca já não é pela paz, ou pelo amor, mas por breves momentos de paz e por breves momentos de amor. As drogas insurgem como libertadoras da mente, que a própria sociedade prendeu, sem conteúdo a mente pode se libertar, mas se liberta para repetir o que já vinha fazendo em uma liberdade oca, vazia.
Uma liberdade irrefletida só pode levar à barbárie, ou a outras regressões. E enquanto o extermínio continua a classe média ocidental busca aquilo que há de mais retrógrado: toda forma de individualismo. A sociedade depressiva, do pânico altera a química e os corpos; e em um prazer quase servil se rende a remédios, a cirurgias plásticas e a esteróides. A auto-ajuda toma conta das idéias se proclamando como a filosofia dos novos tempos, uma filosofia que se nega a pensar. Um livro de auto-ajuda só pode ajudar a si mesmo, ou ao seu autor, já que se é “auto-ajuda”. A maioria desses livros alienam os leitores das questões sociais deixando em vista apenas questões individuais, são a coqueluche do capital. A indústria cultural já ganhou seu status de religião, ou até divino: é onipresente: está em todo lugar, nas rádios, tvs, outdoors...; é onipotente: tem o poder de emplacar a ideologia em todas as mentes, criar desejos...; e, por fim, é onisciente sabe o que seus consumidores pensam e o que desejam. Como deidade nada foge ao seu aparato industrial, aos mais humildes, como se opor àquilo que lhes dá prazer, mesmo que falso e efêmero, é um dos poucos prazeres que se conhece.

continua...