Tuesday, November 21, 2006

Uma Coisa Só


Reinaldo Resende é pedreiro.
Vindo "do Norte", não sabia nada, não tinha experiência. Começou então como um simples servente. Simples... São pedreiros os ditos que constróem moradas, nas quais jamais morarão. De pedra têm muito pouco, ou tudo. Têm na força dos músculos e na dureza com que convivem com as sensações de eternangústia, mas não são nem relativos ou concernentes à pedra, se não forem recorridas metáforas, é claro. O certo é que o pedreiro trabalhou muito como servente para se tornar, enfim, pedreiro. E agora trabalha mais para se tornar algo ainda mais superior. Trabalha tanto que acabou por sofrer um acidente: quebrou seu braço em um tropeço. Sorte foi ter um plano de saúde feito pela empresa, na qual trabalha, para tais situações, seria de muito prejuízo para ela ter um funcionário eficiente a menos por longo período, por isso ele foi logo levado ao médico. Primeiro o pedreiro foi ao pronto socorro do hospital e lá foi atendido pela secretária que falava ao telefone com sua voz nasalada, "eu vô tá passando a ligação do senhor para a central de atendimento, pois aqui nós só resolvemos assuntos a nível de urgência...". O pedreiro logo ficou atordoado: como iria falar com uma mulher tão inteligente sem gaguejar? Uma mulher que por certo deveria ter o mais alto grau de escolaridade se colocarmos como base seus conhecidos. Moça que fez escola técnica e que agora trabalha como secretária, está fazendo um curso de línguas para melhorar seu currículo e quem sabe conseguir um emprego mais rentável. "O que posso fazer pelo senhor?" "E... eu quebrei o braço..." "Tem convênio?" "Tenho... Óqui" "Ah.. sim.." "Preenche aqui e aqui e assina aqui e aqui." Deu sorte de já ter aprendido a ler e escrever quando pequeno, assim não haveria de ficar rubro ao pedir que a secretária preenchesse para ele os tais formulários. Depois de uma certa espera foi atendido pelo clínico geral, que fez uma certa faculdade de medicina e agora é médico, estudou muito para se tornar, enfim, médico. Foram longos anos. Agora o médico estava em frente ao pedreiro examinado, apertando o seu braço. "dói?" "dói" "dói?" "dói". Após a radiografia foi então levado à ortopedista, que sabe melhor cuidar destes assuntos de “quebra-de-braço”. Mulher muito cheirosa e muito magra, "talvez se alimente de perfume", pensou ironicamente o pedreiro. Estudou muitos anos medicina e se especializou em ortopedia, agora faz um curso e tenta adquirir experiência para mudar para um hospital melhor. "Como aconteceu?" "Tropecei e caí" "ahn..." "dói?" "dói" "dói?" "dói". O pedreiro teve que ser engessado, ganhou dispensa de alguns dias no trabalho e poderia descansar, a médica pediu que ele voltasse dentro de um mês para exame. Foi para casa, no primeiro ônibus reconheceu o motorista, era um de seus conterrâneos que viera com ele "do norte". "Estudei bastante, gastei bastante e consegui ganhá licença pra dirigi ônibus, agora ganho bem". Ficou feliz pelo amigo, ficou orgulhoso. Não tinha muita capacidade para a direção e nem gostaria de ficar sentado o dia inteiro, por isso não tinha inveja, só orgulho. Chegou em casa e a mulher já havia voltado da casa na qual trabalha como doméstica, aprendeu a cozinhar com a mãe e arrumar as casas com a vida, às vezes tinha de fazer algum prato diferente, mas aprendeu muito com suas patroas. Estava cozinhando, fazia o arroz mais barato, mas que já vem selecionado e não é preciso peneirar, seria servido com batata assada. Os dois comprados no mercado mais próximo, caro por ser o único próximo e com poucas opções por ter uma limitada vizinhança. Um jantar especial. "Olha..." "quiequi aconteceu?" "caí e quebrô" "tadinho do meu nêgo". Beijo tênue, a doméstica precisava fazer a janta e não podia perder tempo, ainda mais tarde haveria o "amor". O pedreiro senta em frente ao pequeno tevê, já ligado. "Compre" "Compre" "Faça" "Faça" "Vá" "Vá". O clínico geral ainda está trabalhando, ainda não são sete e meia, hora em que começa a se arrumar para ir embora em noites de plantão diurno. Atende alguns pacientes e, enfim, começa a se arrumar. Ao sair se despede de todos com calor e vai até seu carro, não é o último modelo, não tem quatro portas, nem ar condicionado, mas está juntando dinheiro para comprar um que seja melhor: quase zero, com quatro portas, vidro automático, ar condicionado e motor um-ponto-seis. Sente uma leve dor de cabeça e toma um remédio que trazia no bolso, analgésico, anti-inflamatório e caro, seria então o melhor. A menina secretária também estava de saída, ia à sua aula de línguas, uma hora de espanhol e uma hora de inglês, duas caras e cansativas horas, mas seria recompensada: trabalharia menos horas e ganharia mais, depois de aprender as tais línguas, isso era o que pensava. A ortopedista hoje não teria seu curso, foi para casa descansar. Buscou antes seu filho no inglês, era um ótimo aluno seria um grande homem, médico, advogado, tanto faz, seria bom no que fizesse, era esperto puxara a ela e não ao "besta do ex-marido" que nem se formar se formou, "coitado". Voltou a estudar e agora, quem sabe, largará o ofício público e se tornará, enfim, advogado. A mulher chega em casa, pega a comida da geladeira faz um prato para si e outro para o filho e os coloca no microondas. Devia comprar um novo, este já estava defasado, havia visto um no tevê, que era capaz de gratinar, é... amanhã compraria um novo... O amigo do pedreiro, motorista do ônibus, trabalharia hoje até a meia-noite, decidiu fazer hora-extra, pois quer comprar uma casa.